O KARATE RUDE E FEIO DA ANTIGA OKINAWA
A verdade sobre o Karate antigo e grosso de Okinawa.
Você pensa que o Karate surgiu em uma época de heróis, que lutavam pela justiça e pela verdade, como nos filmes que romantizam a época medieval e do feudalismo? Saiba que você errou.
O Karate de Okinawa era cruel. Muito cruel.
Para começar, nem se chamava Karate, mas Ti ('mão' em Uchinaguchi, dialeto de Okinawa). Vamos do início. Como já falamos aqui, o Karate surgiu em Okinawa em um período conturbado, quando a ilha era parte do antigo reino de Ryūkyū. Havia a necessidade dos camponeses se defenderem da opressão dos nobres, que os oprimiam na época da coleta de impostos, e continuar vivendo. A partir daí, as técnicas foram se desenvolvendo e se moldando, culminando no que hoje conhecemos como Karate-Dō.
Falando assim, nem parece muito ruim. Vamos tentar uma abordagem diferente.
O Karate surgiu em Okinawa, em uma época de sociedade desigual, dividida em castas. Se pensarmos bem, essa descrição não parece muito diferente da que o mundo possui hoje. Mas essa desigualdade era realmente agressiva, com pessoas mais abastadas divertindo-se em cima das vidas das menos afortunadas. Em um dia normal de coleta de impostos, vísceras espalhadas pelo chão e campos de cereal queimados eram atividades corriqueiras. Os peichin (guerreiros nobres de okinawa) torturavam e matavam os heimin (camponeses), apunhalando homens, mulheres e crianças sem piedade. Como a luta pela sobrevivência era uma necessidade real, os camponeses começaram a criar maneiras de se proteger, o que fez surgir uma forma de combate que, séculos mais tarde, veio a se desenvolver e ser chamada de Karate-Dō.
Agora ficou mais claro.
Em uma análise fria e realista, você acha que o seu Karate lhe manteria vivo na Okinawa do século XIV d.C.? Provavelmente não. Caso precise de uma comparação mais próxima da atualidade, imagine você e seu Dōjō contra uma tropa de choque armada com escudos e cassetetes, investindo para cima de vocês.
Mais claro ainda, não é?!
Não há necessidade de se preocupar com isso, claro. Os tempos de hoje são outros e a sociedade evoluiu (ainda bem!) e, junto dela, a prática do Karate-Dō. Tanto como esporte quanto como defesa pessoal, a prática dessa arte é eficaz nos tempos atuais, pois veio sendo moldada ao longo da história. Trata-se de um processo permanente de transformação cultural. Mas é importante não deixar de treinar (forte!) para se defender em casos de necessidade, pois a sociedade não evoluiu tanto assim.
Dito isso, podemos destacar três pontos importantes do Karate primordial de Okinawa (ou Ti, como originalmente):
- Era uma prática muito difícil;
- Não envolvia discussões filosóficas;
- Não era algo bonito de ser visto.
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Uma prática difícil (mesmo!)
Não é difícil imaginar o quão complicado era treinar naquela época. Basta pensarmos nas dificuldades que deveriam ser superadas: grupos de guerreiros, armados com espadas, lanças e outras armas igualmente cortantes, que detinham o direito de lhe tirar a vida caso não pagasse aos impostos. Como se isso não bastasse, eles ainda eram mais bem nutridos que você e treinados para o combate.
Para enfrentar uma situação difícil como essa, o treinamento precisava ser igualmente (ou mais) duro. Não devia ser raro alguém dizer, no meio da prática: "Opa! Acho que quebrei meu braço." Mais um dia típico nos campos verdejantes de Okinawa.
É por isso que o Karate é um excelente meio de defesa pessoal. Se não funcionasse, não teria sobrevivido esse tempo todo.
Sem discussões filosóficas (sem Platão aqui)
As pessoas que viviam nos campos estavam preocupadas demais em sobreviver para ter grandes debates existenciais. Ou você acha que uma pessoa está realmente preocupada em se tornar um cidadão exemplar, que auxilia a sociedade a se desenvolver, quando está com uma faca apontada para sua garganta?
Tudo é muito claro quando paramos para refletir: (1) os camponeses viviam sob ameaças constantes, sendo mortos indiscriminadamente; (2) ele criam um jeito de se defender; (3) eles matam os opressores indiscriminadamente. Era uma época e uma sociedade em que, se você não lutasse por sua sobrevivência, ninguém o faria por você. E sobreviver, muitas vezes, implicava causar a morte de outros. Triste, mas é a verdade.
Mais para a frente tudo foi mudando, mas ainda podemos encontrar reflexos disso em pequenas coisas diárias do Karate-Dō. O termo Pin'An / Heian [平安], encontrado nos kata básicos dos estilos, é um exemplo disso. Hoje o traduzimos do japonês como 'Paz e Tranquilidade', mas em chinês (Píng'ān), o idioma de origem do termo, pode ser traduzido como "protegido do perigo" ou "fique em segurança". Apesar de sutil, a mensagem é clara.
Tudo era feio (e beeeem feio...)
Em um cenário agressivo, no qual você precisa treinar duro para sobreviver e não tem tempo de refletir sobre o sentido da vida, ninguém tampouco estaria preocupado com a beleza do que faz. Ao acertar um soco no peito de um guerreiro inimigo, o camponês não parava para pensar "nossa, meu pé direito estava desalinhado em relação ao meu centro de gravidade".
Sim, o Karate surgiu como algo rudimentar e feio. Quando o que importa é a sobrevivência, a plasticidade da forma é irrelevante, pois o que conta é o resultado. Se, no saldo final, você está vivo, pode apostar que a medalha está no seu peito.
Com diversos estudos e observações, sabemos que uma técnica mais apurada consegue extrair mais energia de um corpo, possibilitando que um gesto seja mais eficiente. Hoje, não erramos mais (ou não tanto quanto poderíamos) graças às tentativas e erros nos primórdios de nossa arte. Muitos morreram até que as técnicas pudessem evoluir; portanto, precisamos ter mais respeito com o que fazemos.
Nunca treine de forma displicente! Isso é envergonhar os que criaram e desenvolveram nossa arte, mesmo que indiretamente, ao custo de suas vidas.
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O objetivo desse texto foi retratar de forma mais realista o surgimento do que hoje praticamos como um Budō, a despeito do romantismo que muitas vezes permeia as lendas do Karate. Hoje, nossa arte representa um Caminho para desenvolver o Ser por completo, educando-o em direção a uma vida mais inteira e correta. Isso reflete as profundas mudanças que nossa sociedade sofreu em sua trajetória. Para isso, claro, precisamos continuar treinando cada vez mais.
Mantenha esse espírito vivo. Até a próxima.
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Professor de Karate-Do pela Wado-ryu Renmei do Brasil
Mestrando em Gerontologia Biomédica - PUCRS
Bacharel em Educação Física - UFRGS
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Mestrando em Gerontologia Biomédica - PUCRS
Bacharel em Educação Física - UFRGS
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Referências
CAMPS, H.; CEREZO, S. Estudio técnico comparado de los Katas de Karate. Barcelona: Editorial Alas, 2005.
FUNAKOSHI, G. Karate-Do Nyumon: Texto Introdutório do Mestre. São Paulo: Cultrix, 1999.
FUNAKOSHI, G. Karate-Do Kyohan: The Master Text. Tóquio: Kodansha International, 1973.
KARATE BY JESSE: www.karatebyjesse.com
NAKAZATO, J.; OSHIRO, N.; MIYAGI, T.; TUHA, K.; KOHAGURA, Y.; HIGAONNA, M.; TAIRA, S.; SAKUMOTO, T. Okinawa Karate and Martial Arts with Weaponry. Disponível em: www.wonder-okinawa.jp/023/eng, acesso em: 20 jun. 2005.
CAMPS, H.; CEREZO, S. Estudio técnico comparado de los Katas de Karate. Barcelona: Editorial Alas, 2005.
FUNAKOSHI, G. Karate-Do Nyumon: Texto Introdutório do Mestre. São Paulo: Cultrix, 1999.
FUNAKOSHI, G. Karate-Do Kyohan: The Master Text. Tóquio: Kodansha International, 1973.
KARATE BY JESSE: www.karatebyjesse.com
NAKAZATO, J.; OSHIRO, N.; MIYAGI, T.; TUHA, K.; KOHAGURA, Y.; HIGAONNA, M.; TAIRA, S.; SAKUMOTO, T. Okinawa Karate and Martial Arts with Weaponry. Disponível em: www.wonder-okinawa.jp/023/eng, acesso em: 20 jun. 2005.
E eu aqui achando que o karatê havia surgido num "mar de rosas" kkk. Infelizmente, muitos consideram o karatê apenas uma forma de divertimento ou uma "brincadeira de criança" e se esquecem (ou desconhecem, como eu) as origens desta.
ResponderExcluirGostei muito do artigo, Brandel. Vou compartilhar com os meus amigos!
Obrigado pelo comentário, Juliana. Falar da história do Karate é sempre difícil e problemático, mas nos esforçamos. Osu!
Excluirkarate minha razão
ResponderExcluirOsu! =)
ExcluirExcelente! Oss!
ResponderExcluirOsu! =)
ExcluirMuito interessante esse artigo Professor Brandel, sou um apaixonado por artes marciais já treinei algumas, especialmente o Karate o qual pratico a mais de um ano, e é realmente muito bom saber mais sobre sua origem, parabéns pelo artigo e também pelo site, sou fã dele. Abraço! Osu!
ResponderExcluirObrigado, Bruno! Esperamos continuar desenvolvendo materiais que possam auxiliar os leitores cada vez mais. Osu! =)
ExcluirExcelente trabalho! Osu!
ResponderExcluirObrigado! Osu!
ExcluirSensei Brandel, esse texto foi excelente. Nunca tinha parado para ver por esse prisma.
ResponderExcluirOutro detalhe interessante é a prova da eficácia das técnicas do Karatê-do. Num mundo onde caso você não tivesse o valor a ser pago dos impostos a sua vida estaria em risco, essa maravilhosa arte não teria sobrevivido até os dias de hoje e seguido esta evolução.
Saber essas raízes de nossa arte me dá mais motivação para treinar cada vez mais.
Obrigado.
Osu!!!
Obrigado, Francis! Vamos tentar trazer mais textos assim para o público. =)
ExcluirOsu!
Estou lendo agora este excelente texto. Está de parabéns!! É uma parte da história pouco conhecida inclusive pela maioria dos karatecas. Apenas deixo aqui um adendo: De acordo com os livros: "Okinawa, The History of an Island People" de George H. Ker e "The Essence of Okinawan Karate-Do" de Shosin Nagamine, as raízes do desenvolvimento do Ti são um tanto obscuras, uma vez que há relatos de práticas por parte tanto dos Peichin quanto dos Heimin. Sabe-se porém que os Heimin eram estritamente proibidos de praticar o Ti abertamente, e que os Peichin passavam o conhecimento do Ti de pai para filho, uma vez que as técnicas de mãos nuas eram fundamentais para os Peichin, primeiro devido ao confisco de armas pelo rei Shoshin na ocasião da unificação do reino de Ryūkyū, e depois devido ao desarmamento dos Peichin quando da invasão de Satsuma em 1609. O que leva a crer que tudo era bem feio sim (e não apenas no sentido plástico da coisa, rsrs), e que o Ti foi usado também para subjugar os camponeses da época. ;)
ResponderExcluirRyandro, obrigado pela excelente contribuição! =)
ExcluirOsu!
Excelente! Osu!
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